Escrevo desta vez a respeito de um tema sobre o
qual já publiquei[1], mas que ainda me
intriga, e merece nova abordagem, desta vez em tom menos acadêmico, que permite
atingir um público mais amplo, razão pela qual este espaço se mostra ideal.
Trata-se da
iniciativa de leis em matéria financeira, assunto que, curiosamente, ainda se
mostra desconhecido não somente pelo público, mas também pelos maiores
interessados nele, que são os parlamentares de todo o país.
O processo
legislativo, conjunto de atos por meio do qual são formadas as leis e demais
normas que compõem nosso ordenamento jurídico, é basicamente composto de três
fases. A iniciativa, por meio do qual o processo é deflagrado, a constitutiva,
na qual se dá a tramitação e aprovação, e a fase de integração e eficácia, que
compreende a promulgação e publicação. Embora seja um processo, em tese,
próprio do Poder Legislativo, ele conta com a participação dos demais poderes,
especialmente do Poder Executivo, que tem competência para a iniciativa em
vários temas, cabendo-lhe ainda a sanção, na fase final de aprovação, além de
muitas outras intervenções.
No âmbito das finanças
públicas, a distribuição das atribuições em matéria de processo legislativo
mostra-se mais sensível, dado o grande poder envolvido no controle sobre os
recursos públicos. Torna-se necessário construir um cuidadoso sistema que
permita a participação dos poderes nesse processo de forma a evitar que uma
desigual distribuição venha a permitir que um se sobreponha ao outro.
Sendo o Poder
Executivo o principal responsável pela condução da administração pública, a ele
cabem importantes atribuições no processo legislativo orçamentário,
destacando-se a iniciativa privativa (ou reservada) e vinculada dos projetos de
leis orçamentárias anuais, de diretrizes orçamentárias e planos plurianuais
(artigo 165 da Constituição). Trata-se de competência que lhe confere um grande
poder, sendo, no entanto, coerente e necessária, até porque o Poder Executivo
detém o comando da maior parte da administração pública, compreendendo os
órgãos responsáveis pela arrecadação de recursos e de coordenação do processo
de elaboração e execução orçamentárias.
Mas há um aspecto
extremamente curioso e que chama a atenção. Trata-se de fato sobejamente
conhecido, sendo verdadeiramente “público e notório”, que são de iniciativa
legislativa os projetos de lei em matéria financeira em geral, tais como os que
envolvam gasto público, leis tributárias e outras questões orçamentárias.
Iniciativa privativa esta que, em sendo aplicada — como de fato tem sido —
aniquila quase toda a possibilidade de o Poder Legislativo iniciar o processo
legislativo, pois passam a ser raros os casos de projetos de lei que tenham
relevância e não envolvam as questões mencionadas. Como bem definiu
recentemente o presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo, vereador José
Américo (PT), fica o Poder Legislativo “de mãos atadas”[2].
O vereador
queixa-se da impossibilidade de legislar sobre política tributária e de
elaborar projetos que gerem despesas, sugerindo que se reflita sobre isso (“A
ideia de que os Legislativos não podem elaborar projetos que gerem custos
extras precisa ser revista”, diz ele), expressando o pensamento de quase todos
os parlamentares do País, de todas as esferas de governo, e pede apoio em favor
de emenda constitucional que restaure as prerrogativas do Poder Legislativo.
A norma, no
entanto, não precisa ser revista. E não precisa pelo simples fato de que tal
vedação simplesmente não existe. Mas a “ideia” precisa.
Curioso por saber a
origem desta “vedação”, descobri-a consultando a Constituição anterior, na qual
constava, em seu artigo 57, inciso I, que “é da competência exclusiva do
presidente da República a iniciativa das leis que disponham sobre matéria
financeira” (Constituição brasileira de 1967, com redação da Emenda
Constitucional 1, de 1969; a Constituição de 1967, texto original, tinha a
mesma redação, alterando-se o artigo, que era de número 60, I). Ocorre que tal
dispositivo desapareceu na
Constituição de 1988, não havendo, por conseguinte, porque prevalecer esta
iniciativa privativa das leis que disponham sobre matéria financeira. Trata-se
de norma que deixou de constar de nossos textos legais, mas que parece se
recusar a sair do ordenamento jurídico, pois continua sendo cumprida, como se
pode notar.
Construção
jurisprudencial, poder-se-ia cogitar. Também não. Submetida a questão à nossa
Suprema Corte, pouco após a promulgação Constituição de 1988, o ministro Celso
de Mello bem observou que “a Constituição Federal de 1988 não reproduziu em seu
texto a norma contida no artigo 57, inciso I, da Carta Política de 1969, que
atribuía ao Chefe do Poder Executivo da União a iniciativa de leis referentes a
matéria financeira, o que impede, agora, vigente um novo ordenamento
constitucional, a útil invocação da jurisprudência que se formou,
anteriormente, no Supremo Tribunal Federal, no sentido de que tal constituía
princípio de observância necessária, e de compulsória aplicação, pelas unidades
federadas” (ADI-MC 352, relator ministro Celso de Mello, julgado em 28 de
agosto de 1990). E completa e ratifica, pouco depois, em outro julgado, ao
asseverar que a regra da iniciativa reservada é exceção, sendo aplicável
somente se prevista expressamente no texto, não se presumindo nem comportando
interpretação ampliativa (ADI 724-6/RS, relator ministro Celso de Mello,
julgado em 7 de maio de 1992).
A suposta restrição
à iniciativa legislativa em matéria financeira não está nem na lei, nem na
jurisprudência.
E também na
doutrina não encontra respaldo, pois, além do texto que escrevi, outros autores
já haviam anteriormente sustentado esta mesma tese[3].
E não há que se
falar em eventual disposição legal expressa nesse sentido, nos demais entes da
federação, estabelecendo a vedação para a iniciativa do Poder Legislativo nesta
matéria, pois “as regras básicas do processo legislativo federal são de
absorção compulsória pelos Estados-membros em tudo aquilo que diga respeito –
como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada — ao
princípio fundamental da independência e harmonia dos poderes, como delineado
na Constituição da República” (ADI 276-7/AL, relator ministro Sepúlveda
Pertence, julgado em 13 de janeiro de 1997[4]).
Ouve-se dizer que,
na administração pública, vigora o não escrito e não jurídico princípio do
“sempre foi assim”, e talvez seja essa a explicação mais plausível para esse
fenômeno, em que essa “norma” permanece plenamente eficaz, apesar de não mais
existir!
Para um país em que
muitos se queixam das “leis que não pegam”, fica o registro, ainda que
eventual, desta “lei” que “pegou” até demais, pois continua sendo cumprida
mesmo depois de excluída do texto da Constituição...
Não pode ser outra
a conclusão: nossos parlamentares têm iniciativa para propor leis que disponham
sobre matéria orçamentária (salvo, evidentemente, as leis orçamentárias – PPA,
LDO e LOA), tributária, e mesmo as que envolvam aumento de despesa pública.[5]
E finalizo, com
licença do presidente Barack Obama para adaptar seu slogan de campanha, mandando meu recado aos parlamentares de todo o
país: yes, you can!
[1] Iniciativa legislativa em matéria financeira. In CONTI, José Mauricio; SCAFF, Fernando F. (coords.). Orçamentos Públicos e Direito Financeiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, pp. 283-307. Tendo em vista que o tema já foi
abordado nesta publicação, argumentos desenvolvidos e trechos escritos serão
por vezes reproduzidos, ainda que não com a exata redação, dado o outro estilo
de linguagem adotado, razão pela qual me permito não colocar aspas. E remeto o
leitor ao texto original já publicado, caso tenha interesse em se aprofundar no
tema.
[2] José Américo Dias, Um Legislativo de
mãos atadas, Folha de S. Paulo, em 2 de maio de 2013, p. A6.
[3] FERRARI Filho, Sérgio A. Plebiscito, matéria orçamentária e iniciativa privativa. Parecer 14/99 –
SAFF. In Revista Direito, vol.4, n. 7,
Rio de Janeiro, jan-jun 2000, pp. 247-267.
[4] No mesmo sentido: ADI 2731-0/ES, j. 20.3.2003 e ADI 2892-8/ES, j.
19.2.2004, ambos de relatoria do Min. Carlos Velloso.
[5] Ressalvadas aquelas em que há disposições constitucionais
expressas, tais como a criação de cargos e remuneração de servidores.
José Mauricio Conti é juiz de
Direito em São Paulo, professor associado da Faculdade de Direito da USP,
doutor e livre-docente em Direito Financeiro pela USP
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